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Religiões de matriz africana são os principais alvos de intolerância e racismo no Brasil

O racismo religioso, além de perpetuar preconceitos já existentes, cerceia a liberdade religiosa


Leonardo Ozima*, Jornal da USP | 12/11/2024 | 00:00


Racismo religioso se apresenta de várias formas, aponta especialista | Foto: Freepik

A Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos registrou, no primeiro semestre deste ano, 1.940 denúncias de violações de liberdade religiosa no país, número equivalente a 91% das denúncias do ano passado.

As religiões de matriz africana são os principais alvos de discriminação: dos 575 casos em que houve identificação da vítima, 276 envolveram adeptos de religiões afro-brasileiras.

É importante ressaltar que o preconceito contra religiões de raízes africanas possui uma peculiaridade em relação às outras religiões ocidentais: o racismo.

O racismo religioso difere da intolerância religiosa, pois, além de cercear a liberdade de crença, representa uma discriminação racial e estrutural contra religiões tradicionais de povos negros. Nesse sentido, não se trata de casos isolados, mas sim de um sintoma de uma estrutura que perpetua preconceitos.

O professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP Márcio Henrique Pereira Ponzilacqua, define esse conceito: "O racismo religioso é o conjunto de condutas agressivas e violentas que indicam discriminação e ódio por religiões de matriz africana e seus adeptos, o que acaba por excluir essas pessoas dos espaços públicos e de sua liberdade de expressão".

Ele acrescenta: "O racismo religioso volta-se também contra territórios sagrados, tradições e culturas dessas denominações afro-brasileiras".

Racismo estrutural e intolerância religiosa

A doutoranda Juliana Brant Carvalho, membro do Laboratório de Etnopsicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, explica que o racismo religioso é parte do racismo estrutural.

 

"Nem sempre as pessoas se dão conta da razão pela qual consideram religiões de matriz africana perigosas ou associadas ao mal. Isso ocorre, em grande parte, pela falta de contato e de conhecimento das tradições e culturas afro-brasileiras."

Ela ainda reforça: "Existe uma tendência social de considerar como 'bem' e 'correto' tudo o que se aproxima da cultura eurodescendente, e a espiritualidade cristã é vista como a norma no contexto histórico brasileiro".

Juliana também ressalta que essa perseguição à cultura negra e africana é fruto de um longo processo histórico: "O estudioso Lisias Negrão, em 1973, escreveu que as manifestações afro-brasileiras eram vistas a partir da perspectiva cristã como formas demoníacas, pois seus símbolos e rituais desafiavam os costumes da época da escravidão, durante o processo de colonização. Isso se reflete até os dias atuais, gerando equívocos e incompreensões sobre as manifestações de populações não brancas".

Ela ainda afirma que esse cerceamento da cultura negra remonta à época colonialista e perdurou até pouco tempo atrás: "A população negra não podia expressar livremente suas raízes espirituais sem ser criminalizada. A capoeira e a umbanda são exemplos de como essa população contornava a perseguição, mascarando significados por meio do sincretismo e escondendo-os no que era aceito pelo contexto hegemônico. A capoeira era vista como uma dança, e a umbanda incorporava elementos de santos católicos".

Juliana enfatiza que a coexistência é essencial e que a intolerância, em alguns casos, surge do fundamentalismo religioso: "Quando um grupo dissemina uma ideia pouco disposta a compartilhar a sua verdade, entendendo-a como única, a intolerância tende a surgir. Já o racismo é reforçado por uma visão em que essa 'verdade única' historicamente vem de contextos eurodescendentes, que se impuseram na América Latina, África e Ásia".

Leis e políticas públicas

Ponzilacqua aborda como a legislação brasileira trata o racismo: "A Lei 7.716, de 1989, chamada Lei Caó, tipifica os crimes de racismo e de injúria racial. A injúria racial refere-se a uma ofensa dirigida a alguém por questões de raça, cor e etnia. Já o crime de racismo aplica-se a toda uma coletividade". O professor complementa: "Recentemente, a Lei 14.519, de 2023, instituiu o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, reconhecendo a importância das tradições, culturas e espaços sagrados desses povos".Ele acrescenta: "Também houve alteração na Lei 7.716, por meio da Lei 14.532 de 2023, incorporando a motivação religiosa à tipificação do racismo e da injúria racial. O racismo religioso, assim, abrange tanto o elemento religioso quanto o racial, dirigindo-se a religiões afro-brasileiras e seus adeptos por razões étnico-raciais".

O professor ressalta que o efeito das leis não é imediato e que elas demandam tempo para serem assimiladas. Como essas alterações são recentes, ainda não se observam impactos significativos, mas são fundamentais para estabelecer parâmetros e regulamentos de controle e garantias.

Por fim, Ponzilacqua observa: "Outro elemento importante é que o racismo religioso se manifesta de diversas formas, o que tem sido cada vez mais abordado nas políticas públicas. Existe uma subnotificação dessas agressões e violências, e é preciso promover meios para que esses grupos denunciem e relatem essas agressões".

Ele completa: "É essencial que esses grupos se organizem para participar dos poderes constituídos, pois há sub-representação de indígenas, quilombolas e membros de comunidades tradicionais de matriz africana, especialmente nos poderes Executivo e Legislativo".

 

(*) Estagiário sob supervisão de Ferraz Junior e Rose Talamone


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